Crime ambiental em alta: fogo em helicóptero é a ponta do iceberg, dizem fiscais

 Aeronave queimada no AM reflete onda de violência contra agentes de fiscalização, considerados vilões por Bolsonaro

Aeronave incendiada no aeroclube de Manaus desfalca combate a crimes ambientais - Divulgação / PM-AM                                 

O incêndio a dois helicópteros do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), na última semana, expôs a fragilidade dos órgãos federais de fiscalização ambiental diante do empoderamento de criminosos ambientais. 

As aeronaves estavam no Aeroclube de Manaus (AM), quando homens invadiram o espaço e atearam fogo. Uma delas, utilizada para operações em áreas de difícil acesso, ficou completamente destruída. Três suspeitos foram presos. 

Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o episódio, tido como represália pela operação contra o garimpo no rio Madeira, é apenas a ponta do iceberg. Relatos colhidos dão conta da ocorrência de dezenas de casos semelhantes nos últimos anos. 

Segundo a categoria, ações violentas contra fiscais ambientais vêm crescendo sob a influência do presidente Jair Bolsonaro (PL), sempre protagonizadas por garimpeiros, madeireiros e pecuaristas que atuam fora da lei. 

“O risco faz parte da profissão. Nosso país tem bastante crime ambiental desde sempre. Mas é inegável que, com a gestão do Bolsonaro, tudo mudou do vinho para a água”.

A constatação é de uma pessoa que integra a diretoria da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), mas que preferiu não ter o nome divulgado por medo de represálias. 

A Ascema representa trabalhadores do funcionalismo público federal e é composta por 27 entidades de todo o Brasil. 

“Os infratores realmente ficaram empoderados. Quando a gente vai a campo ou quando eles aparecem na sede do Ibama ou do ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade], eles nos afrontam e gritam: 'Agora está diferente, quem manda é o Bolsonaro ", conta a Associação. 

A diretoria da Ascema aponta ainda que a frouxidão no combate a infrações no campo atrai investimentos do crime organizado, que vem migrando de atividade em busca de novas fontes de enriquecimento.

"As facções estão atuando com grilagem, com garimpo, com expulsão de moradores da reforma agrária, pequenos colonos, quilombolas, indígenas e ribeirinhos das suas áreas."

A Ascema reclama de outras condições de trabalho: "Os fiscais não têm adicional [financeiro] nenhum. A nossa diária [paga durante realização de atividades externas] está super baixa, não custeia nem quase hotel e alimentação. E não tem adicional de insalubridade e periculosidade minimamente seguido". 

Clima de medo 

O clima generalizado, segundo a Ascema, é de temor pela própria integridade física. “Os servidores do ICMBio e do Ibama de Roraima – todos, não só os fiscais – têm a vida monitorada. Os garimpeiros têm pleno controle do território e todo mundo vive sob ameaça”.

O estado é uma das regiões mais conflituosas do Brasil, onde o garimpo ilegal atua livremente na Terra Indígena Yanomami, a maior do país.

Em maio de 2020, a Estação Ecológica (Esec) de Maracá, gerida pelo ICMBio, foi invadida por homens encapuzados que fizeram três brigadistas reféns. 

As vítimas conseguiram fugir, mas o grupo roubou quadriciclos e motores de barco pertencentes ao Instituto, além de materiais utilizados no garimpo apreendidos semanas antes. 

Em Altamira (PA), nem mesmo a escolta de homens da Força Nacional e da Polícia Federal intimidam os garimpeiros ilegais. 

Durante uma fiscalização do Ibama em 2019 na Terra Indígena Ituna/Itatá, os servidores foram recebidos a tiros pelos criminosos ambientais. Ninguém ficou ferido. 

Veja outros episódio de demonstração de força de criminosos ambientais:

• Setembro/2021: Caminhonete alugada pelo Ibama incendiada em Boa Vista (RR)
• Junho/2021: Madeireiros bloqueiam BR-364 em Porto Velho (RO) 
• Maio/2020: Fiscal do Ibama agredido com garrafada na cabeça em Uruará (PA)
• Janeiro/2020: Ibama e PM recebidos a tiros por madeireiros em Rorainópolis (RR)
• Julho/2019: Caminhão-tanque a serviço do Ibama incendiado em Espigão do Oeste (RO).
• Outubro/2018: Três viaturas do Ibama são incendiadas em Buritis (RO)
• Outubro/2017: Prédios do Ibama e ICMBio incendiados em Humaita (AM)
• Julho/2017: 16 viaturas do Ibama incendiadas na BR-163 em Altamira (PA)
• Julho/2017: Oito caminhonetes incendiadas em Altamira (PA)

“Pior que a boiada de Salles” 

A urbanista, advogada e doutora em Ciência Política Suely Araújo, presidente do Ibama entre 2016 e 2019, confirma que os enfrentamentos não começaram no governo Bolsonaro, mas antes eram mais esporádicos.  

“Hoje os servidores estão em uma situação de maior risco por esse clima em que o próprio governo contesta a legitimidade do monitoramento dos biomas. O fiscal se sente deslegitimado, e a população passa a vê-lo como uma coisa que atrapalha”, afirma.

Araújo percebeu a escalada de violência a partir do segundo semestre de 2018, em função, segundo ela, do discurso adotado por Bolsonaro durante a campanha eleitoral para presidente.

Rotulando fiscais como vilões, o então candidato presidencial pelo Partido Social Liberal (PSL) prometeu acabar com a fiscalização ambiental, definida, nas palavras dele, como “indústria da multa no campo”. 

Em 2012, o próprio Bolsonaro foi multado por um fiscal do Ibama por pesca ilegal em uma estação ecológica em Angra dos Reis.

Número de multas despenca 

Alçado à presidência, o descrédito da vigilância ambiental passou de discurso eleitoral à política oficial do Estado brasileiro. 

Em abril de 2019, o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles instituiu audiências de conciliação como etapa obrigatória antes da efetiva cobrança de multas lavradas pelos órgãos de fiscalização.

Mas nos últimos dois anos, apenas 1,7% das multas passaram pelo procedimento, conforme o Tribunal de Contas da União (TCU).


Bolsonaro pescando dentro da Estação Ecológica de Tamoios, região de Angra dos Reis; foto foi tirada por agente ambiental / Ibama

“Foi criada uma etapa de conciliação que não é concretizada. Foi apenas uma maneira de postergar a aplicação da sanção. Se o criminoso tem na cabeça que o Ibama nunca vai cobrar esse dinheiro, ele não está nem aí para a multa”, afirma a ex-presidente do Ibama.

Segundo a advogada, esse foi um dos principais instrumentos de desmonte da fiscalização, aliado ao baixo número de agentes - atualmente menos da metade do necessário - e à substituição de pessoal capacitado, principalmente, por policiais militares.

“O estrago não é feito só com as boiadas do [ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo] Salles. O enfraquecimento do discurso geral contra a fiscalização, para mim, é o ponto mais forte”, avalia Araújo.

A sabotagem interna dos mecanismos de fiscalização deu resultados. 

Em janeiro deste ano, o presidente comemorou publicamente a queda de autuações, durante evento do Banco do Brasil.

“Paramos de ter grandes problemas com a questão ambiental, especialmente no tocante à multa. Tem que existir? Tem. Mas conversamos e nós reduzimos em mais de 80% as multagens no campo”, afirmou o presidente.

Assédio e perseguição

A Associação Nacional dos Servidores Ambientais relata crescentes episódios de assédio moral e perseguição por parte dos ocupantes de cargos de chefia. 

Segundo a Ascema, foram abertos mais de 100 Processos Administrativos Disciplinares (PADs) baseados em denúncias falsas de infratores ambientais, principalmente no Ibama. Quando finalizado, o procedimento pode resultar em demissão.

“São casos em que os criminosos obviamente estão querendo se vingar dos fiscais. E aí o Ibama acolhe e abre os processos baseado exclusivamente na versão deles”, afirma a Associação. 

Criado por sindicatos de servidores públicos federais em meados de 2020, o site Assediômetro aponta o Ibama como o campeão de casos de assédio institucional contra servidores, com 21 registros. 

Outros órgãos federais que atuam na questão agrária ocupam posição de destaque entre as 61 instituições presentes no ranking.

O ICMBio aparece em 9º lugar, com 10 casos. A Fundação Nacional do Índio (Funai) tem sete registros e aparece em 13º. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) fica em 15º, com seis casos contabilizados. 

“As pessoas têm medo de trabalhar. O governo faz de tudo para você não exercer sua função e favorecer essa vertente antiambiental”, diz a Ascema. 

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