Petrobras deveria assumir papel de estabilizar preços no Brasil, diz economista

 David Deccache critica lucros exorbitantes dos acionistas e defende que estatal garanta soberania enérgica do país

Preço da gasolina seria de R$ 4 reais se cálculo dos preços fosse mais justo, diz o professor voluntário da UNB                             

O mais novo aumento no preço de combustíveis anunciado pela Petrobras ameaça aprofundar a crise econômica vivida pelos brasileiros. David Deccache, assessor econômico da bancada do Psol na Câmara dos Deputados e professor voluntário de Economia na UnB, afirma que os impactos vão muito além da bomba no posto de gasolina. Os efeitos, muitas vezes, são desconhecidos da população, como a elevação do preço da energia termelétrica.

"Por outro lado, nem todo mundo perde com isso. A distribuição de lucros para os acionistas subiu 1400% em relação ao ano de 2020, ao passo que a população sofre diariamente com a elevação de preços de combustíveis", afirmou o economista, em entrevista disponível na íntegra a seguir. 

Ele ressalta que o conflito na Ucrânia, sozinho, não explica a elevação colocada em prática na sexta-feira (11). que foi o maior do ano. O verdadeiro vilão é o chamado Preço por Paridade Internacional (PPI), colocada em prática no governo de Michel Temer.  

"Esse preço maximiza o lucro da Petrobras e, por outro lado, permite que importadoras possam vender no Brasil, porque a Petrobras tem que vender no mesmo preço que uma importadora consegue vender para o Brasil", explica Deccache.

Para o economista, o caráter estatal da empresa deveria guiá-la para uma política que beneficiasse o conjunto da população. Ele lamenta que a raiz do problema seja ocultada em discursos que colocam o ICMS como detonador do aumento dos combustíveis. 

"O Congresso, em vez de buscar matérias legislativas que desresponsabilizem o governo federal ao ignorar a culpa pelo aumento de preços, como se a culpa fosse dos governadores, deveria denunciar o governo federal e exigir que o governo federal assuma a responsabilidade que é dele", critica.

Confira a entrevista na íntegra 

Quais são as consequências econômicas do aumento no preço dos combustíveis para o conjunto da população? 

David Deccache: A população vai ser duramente penalizada com esse aumento por vários caminhos. Por exemplo, toda a nossa matriz logística rodoviária precisa de diesel. Então, não é só o caminhoneiro que vai ser impactado. Todos os outros produtos que são transportados por caminhão serão. Então isso tem impacto no preço dos alimentos e de diversos itens básicos.  

Além disso, quando a gente fala de diesel, a gente fala de transportes públicos. Então tem um aumento muito grande esperado sobre o preço dos transportes, que é a forma como o trabalhador se desloca para o seu local de trabalho. Quando a gente fala de gás de cozinha, obviamente isso impacta enormemente num custo da alimentação nas residências.

Logo, os impactos são sistêmicos, ou seja, eles se espalham por toda a economia e para todos os outros preços. A gente poderia continuar dando vários exemplos de impactos de preços de combustíveis em preços que as pessoas às vezes não conseguem nem associar a essa elevação. Por exemplo, o preço da energia elétrica. A gente aciona termelétrica toda hora. Termelétrica tem diesel, logo o custo da energia também pode subir. 

Por outro lado, nem todo mundo perde com isso. Isso é muito importante. Os acionistas da Petrobras, dada a política de preços praticados, ganham muito com esse aumento. A Petrobras tem batido recordes de lucro e de distribuição de lucros para os acionistas já bilionários, em detrimento do conjunto da população, que está pagando esses preços elevadíssimos em praticamente tudo que consome hoje no Brasil. As importadoras também ganham muito com a política de preços da Petrobras.

Só a guerra da Ucrânia e Rússia justifica esse novo aumento, já que nós temos visto altas nos preços dos combustíveis antes de explodir o conflito?

A gente tem que separar os fatores conjunturais dos fatores estruturais. O conflito geopolítico atual é o fator conjuntural. O repasse dos preços derivados desse conflito é um fator estrutural. Qual é o fator estrutural que faz com que, em determinadas conjunturas, haja essa pressão altíssima nos preços internos? É a política de preços praticada pela operadora Petrobras desde 2016, após o golpe que derrubou a presidenta Dilma. Essa política foi colocada em prática por Pedro Parente e Michel Temer a partir de 2016.

E como funciona essa política? Apesar de o Brasil ser autossuficiente na produção de petróleo e ter grande capacidade de refino – a gente consegue refinar mais de 90% da gasolina consumida internamente e aproximadamente 85% do diesel para os internamente –, como a Petrobras calcula hoje o preço dos combustíveis que o brasileiro paga?

Ela simula importação de um determinado combustível. Quanto que a gente pagaria se a gente não produzisse nada no Brasil hoje, se a gente não tivesse uma gota de petróleo e nenhuma refinaria? Se a gente tivesse que trazer combustível do Golfo do México, de navio, chegando aqui, pagando taxa de importação, qual seria esse preço? É esse preço que eles cobram.

Esse preço maximiza o lucro da Petrobras e, por outro lado, permite que importadoras possam vender no Brasil, porque a Petrobras tem que vender no mesmo preço que uma importadora consegue vender para o Brasil. Ela não vende abaixo. Então isso abre o nosso mercado. Isso maximiza, obviamente, o lucro da Petrobras, como também permite que importadoras como a Shell acessem o mercado brasileiro.

Antes se calculava os custos internos de produção e os custos também de importação, só para a parte que deveria ser importada. Em cima disso, aplicava uma margem de lucro. Não era a política atual que simula importações. Quando a gente está simulando importação, apesar de toda a nossa capacidade de produção e refino, a gente automaticamente repassa para a população todos os choques externos.

Essa é uma política inadmissível, por "n" motivos. Eu vou dar dois. Primeiro, porque a Petrobras é uma empresa estatal, construída com suor, com dinheiro, com o trabalho do povo brasileiro. Logo ela tem outras funções que não apenas maximizar o lucro. Ela tem que se preocupar com o bem-estar do conjunto da sociedade. Inclusive como o preço dos combustíveis é um preço estratégico para todo o conjunto da sociedade e gera inúmeras externalidades negativas, deve ser um preço determinado, com outros fins, além da maximização da taxa de lucro. 

O segundo motivo é que essa política causa uma grande instabilidade para economia como um todo, pressiona demasiadamente a inflação do país. E em um momento de crise como esse, o Banco Central tem que subir as taxas de juros para combater a inflação, desacelerando ainda mais a economia, prejudicando a geração de empregos e qualquer possibilidade de retomada econômica.

Então é uma política muito contraproducente em vários sentidos, que deveria ser revogada totalmente. No lugar, deveria se adotar uma política que leve em consideração os custos de produção e uma margem de lucro aceitável para a Petrobrás, que não prejudicasse funcionamento dela, mas nada exorbitante como é hoje. Em 2021 a Petrobras bateu o recorde de lucratividade. A gente produziu muito também. A distribuição de lucros para os acionistas subiu 1400% em relação ao ano de 2020, ao passo que a população sofre diariamente com a elevação de preços de combustíveis. 

Por que foi escolhida essa política de preços e por que, dado o cenário nacional e internacional, ela se mantém, já que é contraproducente?

A explicação é muito simples. A política maximiza o lucro da Petrobras às custas da elevação do preço de combustível para a população brasileira. Logo, maximiza a distribuição de lucros e dividendos para os acionistas, que tem grande poder de lobby. Além disso, permite que importadoras, como a Shell, acessem o mercado brasileiro, já que a Petrobras cobra o preço de importação. Logo, um preço que torna a Shell competitivo no Brasil. E aí a gente consegue enxergar esse aspecto na ociosidade das nossas refinarias, que estão com a ociosidade recorde hoje no Brasil. Isso tudo tem a ver com os interesses das importadores e dos acionistas bilionários.

O que acontecia antes é que a gente não seguia essa política de maximização de lucros, que é o PPI. Logo os lucros da Petrobras ficavam aquém que poderiam ser. De fato isso é verdade. E, com a política de PPI, a Petrobras consegue alcançar lucratividade máxima possível.  

Esse é um debate descritivo, mas por trás disso tem um debate ideológico. Qual deve ser o objetivo da precificação de combustíveis realizada pela Petrobras? Para eles, é maximizar lucro. Na minha opinião e para o campo progressista, a Petrobras tem outros objetivos, como uma empresa estatal. Por exemplo, ela deve se responsabilizar também pelo controle da inflação no Brasil, do custo de vida da população, pelos impactos generalizados que a política de preços traz para o conjunto da sociedade.

Ela não deve agir como se fosse privatizada. Hoje a Petrobras age como se fosse uma empresa privada qualquer, maximizando o lucro. A justificativa formal deles é maximização de lucro. Inclusive eles falam que, na época da Dilma, por não ter uma política desse tipo, a Petrobras apresentava resultados aquém daquilo que poderia apresentar. De fato, essa política da Petrobras aumentou o lucro dos acionistas em 2021 em 1400% em relação a 2020. Ela foi maravilhosa para o acionista.  

Medidas como fixar o preço do ICMS por litro e congelar os preços são efetivas? 

As medidas que veem esse aumento como causado pelo ICMS são anticientíficas. O aumento de preços de combustíveis não tem nada a ver com o aumento de ICMS. As alíquotas do ICMS no Brasil continuam iguais. O que aconteceu foi que o preço de combustíveis explodiu. Dada uma mesma alíquota, a arrecadação também se altera para os estados. Não houve aumento de alíquotas de ICMS nos estados nos últimos anos. Logo, isso não pode ser a causa do aumento dos preços combustíveis. Portanto qualquer tipo de proposta legislativa que parta desse diagnóstico está errada.

Mais do que isso, as propostas que focam no ICMS para tentar reduzir preços de combustíveis têm um custo social. Os estados perdem receita para conseguir reduzir preço, receita essa que poderia estar sendo destinada à saúde, educação e serviços públicos. Logo, essa não é uma boa solução. A solução é focar no PPI.

Além de partir de um diagnóstico errado, além de penalizar os serviços públicos ao retirar a receita dos estados e municípios por tabela, essa política é muito ineficiente. Eu realizei um cálculo e, em média, o PLP aprovado ontem que trata de ICMS, tem impacto de 30 centavos no preço do diesel mais ou menos. É muito baixo.

O Congresso, ao invés de buscar matérias legislativas que desresponsabilizem o governo federal ao ignorar que a culpa pelo aumento de preços é da política de preços estabelecida pela Petrobras sob a responsabilidade do governo federal e ficar mandando matérias de ICMS, como se a culpa fosse dos governadores, deveria denunciar o governo federal e exigir que o governo federal assuma a responsabilidade que é dele.

A gente não pode passar essa responsabilidade para a população é via redução de receitas, penalizando o conjunto da sociedade com redução de ICMS. A gente tem que focar, obviamente, na mudança de preços de combustíveis. E o Congresso tem ido pelo caminho errado ao reforçar a narrativa do Bolsonaro de que a culpada do aumento dos preços é da taxação de ICMS nos estados. Isso é mentira. E o Congresso não pode continuar reforçando isso.

E o congelamento de preços? 

Na verdade a gente não tem que congelar preços. O que a gente tem que fazer é uma política de preços adequada. Eu não falo nem de subsídio, que seria cobrar um preço menor do que o custo. A gente deve calcular o custo de produção da Petrobras. Em cima desse custo de produção, aplicar uma margem de lucro socialmente aceitável para a empresa dar prosseguimento ao seu funcionamento. Esse é o preço que tem que chegar para a população.  

A gente não precisa congelar, é só fazer uma política adequada, que leve em consideração os custos da empresa. A gente não quer que a empresa quebre. Deve-se ter uma margem de lucro aceitável, porque a gente também não quer que a empresa e seus acionistas faturem em cima de crises econômicas, quando elas deveriam estar agindo de forma anticíclica.

Se você tem uma pressão de preços e capacidade de autossuficiência de petróleo, grande capacidade de refino, a gente deve atuar com isso que a gente construiu em mais de meio de século na proteção do poder de compra da população. E não o inverso, lucrar com a situação adversa. 

Quanto a gente conseguiria reduzir o preço se a PPI fosse revogada?

Nos últimos cálculos do Observatório de Preços da Petrobras, o preço da gasolina, na média nacional, ficaria em torno de R$ 4, sendo calculados os custos de produção de produção e uma margem de lucro aceitável. 

Qual é a situação das refinarias hoje no país? 

A política de preços da Petrobras atualmente favorece a importação e estimula a ociosidade das nossas refinarias. Em 2010 a gente refinava mais ou menos 2,2 milhões de litros de combustíveis. Hoje a gente ensina 1,7 milhões. No mesmo em período que o nosso refino despencou, a nossa produção de petróleo explodiu. E isso só se explica por um motivo: é uma ociosidade planejada para favorecer importadores. E isso está acontecendo no Brasil após o golpe de 2016 como uma política de estado que favoreceu os importadores, gerou ociosidades nas refinarias em detrimento do conjunto da sociedade.  

A ociosidade foi gerada pela privatização das refinarias? 

Sim, as privatizações que eles prometiam que geraria uma redução dos preços, o que obviamente não aconteceu. E também porque, com a possibilidade das empresas privadas transnacionais, como a Shell, importarem para o país, é gerada uma competição com o refino interno. 

O setor privado não age de acordo com os interesses do conjunto da sociedade, e sim de maximização de lucro, o que é natural no capitalismo. Enquanto a gente vai perdendo esse controle de das refinarias e, mesmo nas que a gente tem controle, a gente não quer interferir.  

A gente perde capacidade de amortecer preços e planejar a produção interna de combustíveis. A gente tem uma produção muito alta e uma capacidade de refino muito aquém dessa elevação de produção de petróleo. Esse descolamento é muito grave. A gente poderia estar refinando muito mais internamente, ou seja, internalizando os custos em reais e ficando blindado – ou relativamente blindado -  das flutuações abruptas no preço do câmbio e do barril de petróleo internacional. 

Como deveria ser a atuação da Petrobras, levando em consideração os objetivos pelos quais ela foi criada?

Pensando no Brasil de hoje, a Petrobras deve atender a três objetivos principais. Buscar a plena soberania energética do país, justamente para a gente não ficar refém da volatilidade da geopolítica internacional que, ao longo da história, marca o nosso modelo energético. A gente caminhou nesse sentido nos últimos anos e, a partir do golpe, isso vem sendo desmontado.  

A busca pela autossuficiência e pela ampliação da nossa capacidade de refino é justamente para o Brasil não ser refém das crises globais e para que isso não seja um peso excessivo para a população. A Petrobrás tem esse papel fundamental, a soberania econômica energética. 

Em segundo lugar, a Petrobras hoje tem um papel fundamental de promover a transição energética da nossa matriz no Brasil. Esse é o debate mais atual e é uma nova função que ela deve cumprir. Ela deve usar seus recursos, humanos, tecnológicos e financeiros para a promoção da transição energética.  

Por fim, a Petrobras é uma instituição muito importante, ainda mais como uma instituição estatal, no controle de preços da economia brasileira. Ela tem um papel fundamental na dinâmica de preços, na dinâmica da inflação, dada a nossa matriz transporte e nossas especificidades logísticas. Ela é central para a estabilidade de preços no Brasil e ela deve assumir esse papel também.  

É claro que a gente não quer uma Petrobrás frágil, sem capacidade de funcionar. Até porque eu estou falando exatamente que ela é fundamental para a soberania energética, para transição energética, para a modicidade de preços.  

O que a gente não quer é que ela sirva única e exclusivamente para maximizar lucros de acionistas no curtíssimo prazo. Ela não deve ser uma empresa voltada para favorecer poucos bilionários em detrimento de todo o conjunto da população trabalhadora que sofre com essa política maldosa e anticientífica de preços praticada praticada após o golpe.  

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