Projetos do governo para tributar super-ricos adequam Brasil à realidade mundial
Propostas visam reequilibrar contas públicas reduzindo privilégios tributários dos que mais têm dinheiro no país
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enviou à Câmara dos Deputados ainda no mês de agosto três propostas para aumentar a cobrança de impostos sobre a parcela mais rica da população brasileira. Os textos fazem parte de um esforço para aumentar a arrecadação da União e equilibrar as contas públicas a partir do ano que vem. Integram também movimento para adequar o sistema tributário nacional ao que é internacionalmente aplicado e recomendado por especialistas.
Há no Brasil rendimentos que somente aqui e em algumas outras partes do mundo são isentos de impostos. As isenções, geralmente, beneficiam quem já é rico e tem recursos de sobra para arcar com seus tributos. Transformam o país em um "paraíso fiscal para super-ricos", segundo a auditora da Receita Federal aposentada e diretora do Instituto Justiça Tributária (IJT), Clair Hickmann. Por isso, precisam ser extintas.
As propostas do governo tratam da cobrança de impostos sobre rendimentos obtidos por aplicações financeiras em fundos exclusivos; por meio de empresas abertas em paraísos fiscais, as offshores; e acabam com o chamado juros sobre capital próprio.
Juros sobre capital próprio
Juros sobre capital próprio são valores pagos por empresas a seus acionistas. Companhias com capital aberto, com ações negociadas em bolsa de valores, transferem recursos a investidores para, em tese, remunerá-los pelo dinheiro "imobilizado" na companhia. É como se a companhia entendesse que o recurso do investidor poderia ter ficado no banco, rendendo juros, se ele não tivesse comprado suas ações. Ela, então, o compensa por isso.
Ao fazer esses pagamentos, a empresa os registra como uma despesa. Por conta disso, acaba pagando menos Impostos de Renda sobre seus ganhos. O acionista até recolhe 15% em tributos sobre o juros sobre capital. Isso, contudo, acaba não compensando o quanto a companhia deixa de recolher à União ao pagar seu investidor. Por isso, o governo quer acabar com esse tipo de operação.
Segundo o Ministério da Fazenda, só no Brasil ela acontece de forma tão livre. Internacionalmente, há limites para esse tipo de pagamento para evitar abusos, que tendem beneficiar os investidores mais ricos.
Entre 2016 e 2020, cerca de 2,8 milhões de pessoas físicas receberam juros sobre capital fixo – 2% da população nacional. O valor anual total recebido por esses beneficiários foi de cerca de R$ 30,6 bilhões. Contribuintes com renda mensal de mais de R$ 20 mil obtiveram 96,6% do valor distribuído em juros sobre capital próprio no país.
"Juros sobre capital próprio é uma despesa fictícia, que reduz o lucro tributável das grandes empresas e, por conseguinte, reduz o imposto de renda delas. É um benefício fiscal que não existe em nenhum país do mundo", ratificou Hickmann, do IJF.
O governo estima arrecadar R$ 10,5 bilhões em 2024 com a extinção do juros sobre capital. O valor é semelhante ao orçamento anual do programa Minha Casa Minha Vida.
Offshores
O Brasil também é um dos únicos países do mundo que não taxam periodicamente o rendimento obtido por empresas abertas em paraísos fiscais, as offshores. "A maioria dos países adota regras antidiferimento da tributação de offshores, tanto para pessoas jurídicas, quanto para pessoas físicas. Podemos citar, como exemplos, na América Latina, o Chile, Colômbia e México, na União Europeia, a Alemanha, Áustria, Bélgica, França, Holanda, Portugal, e, no restante do mundo, os Estados Unidos, o Reino Unido e a Austrália, dentre outros", listou o Ministério da Fazenda, ao propor uma mudança ao Congresso.
Qualquer brasileiro pode ter uma empresa offshore, desde que ela seja declarada à Receita Federal. Segundo o Banco Central, no entanto, não passam de 20 mil os que mantêm algum recurso fora do país. Cerca de 75% deles têm mais de 1 milhão de dólares (aproximadamente R$ 5 milhões) investidos no exterior.
Hoje, no Brasil, eles só pagam Imposto de Renda sobre o que ganham fora do país quando trazem recursos de volta ao Brasil. O que o governo defende é que essa tributação seja feita periodicamente, em cima do rendimento anual dos investimentos fora do país.
Esse tipo de cobrança já acontece com investimentos feitos aqui no Brasil, em fundos, por exemplo. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) recomenda que esse tipo de taxação sirva também para aplicações no exterior.
"Os super-ricos do Brasil levam seus recursos para fora e recebem rendimentos, principalmente por meio de offshore em paraísos fiscais, mas nunca disponibilizam tais rendimentos, o que faz com que esses rendimentos não sejam tributados", explicou Hickmann, apontando a falha na tributação que o governo quer extinguir.
O governo estima arrecadar mais de R$ 20 bilhões com a mudança na tributação de offshores até 2026. O valor supera o custo do pagamento de precatórios em 2023. Os precatórios são pagamentos ordenados pela Justiça em processo em que a União foi condenada.
Fundos exclusivos
Fundos exclusivos são tipo de investimentos cuja tributação no Brasil não segue nem mesmo o padrão brasileiro. Hoje, o rendimento de aplicações financeiras normais são tributados duas vezes por ano, no sistema de "come-cotas". Já o dos fundos exclusivos, só em caso de resgate.
"As medidas ora propostas buscam corrigir graves distorções do sistema tributário, com notório prejuízo à isonomia e ao orçamento do país", justificou o governo, ao enviar uma Medida Provisória (MP) ao Congresso para mudar a taxação desses fundos.
Fundos exclusivos são aqueles criados para atender um único cliente ou um grupo hiper-restrito de clientes – todos eles milionários. Para criar um fundo exclusivo, é preciso aplicar nele pelo menos R$ 10 milhões.
Dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia que regula o mercado de capitais, indicam que esses fundos têm um patrimônio de R$ 530,7 bilhões, distribuído entre 16.194 cotistas pessoas físicas. Isso equivale a um patrimônio médio de quase R$ 32,8 milhões por pessoa.
A ideia do governo é instituir a cobrança "come-cotas" também sobre os rendimentos dos fundos exclusivos. A previsão é R$ 24 bilhões entre 2023 e 2026 com isso.
Resistência no Congresso
Todas as propostas para taxação dos mais ricos elaboradas pelo governo dependem de aprovação no Congresso Nacional para entrarem em vigor definitivamente. Na Câmara, parte delas já enfrentou resistência, inclusive do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).
O governo Lula já tentou instituir essa cobrança de impostos por meio de uma Medida Provisória (MP), em maio. A MP, contudo, sequer foi colocada na pauta de votação da Câmara por Lira. Perdeu validade e acabou convertida em projeto de lei, por exemplo.
"O maior lobby em favor dos super-ricos é feito pelo próprio Congresso", disse Dão Real Pereira dos Santos, presidente do IJF e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia, sobre a dificuldade do governo em aprovar propostas que aumentem a tributação sobre os mais ricos da nação.
Essa dificuldade deixa o sistema tributário nacional atrasado, segundo Mauricio Weiss, economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "Nossa parcela de tributação sobre a renda e riqueza é muito menor do que a dos demais países da OCDE", ressaltou ele.
Outras medidas
Pedro Faria, economista e pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ratificou o atraso constatado por Weiss. Lembrou que há questões que o governo nem começou a debater, mas que precisarão ser discutidas caso o país pretenda ter um sistema tributário mais justo.
Faria lembrou que o Brasil não cobra impostos sobre dividendos – parcela do lucro distribuída por empresas a seus acionistas. Em 2021, o governo do então presidente Jair Bolsonaro enviou uma proposta para passar a tributar esse rendimento. Informou ao Congresso que, além do Brasil, só a Letônia não tributava tal ganho dentre os membros da OCDE. Mesmo assim, a proposta não avançou.
O governo Lula não apresentou projetos para voltar a debater o tema.
Ele também lembrou que a tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física no Brasil tem alíquota máxima de 27,5%. Isso é baixo para padrões internacionais. "Todos os países que têm Estado de bem-estar social têm alíquotas de 40% ou 45%, e já tiveram maiores", disse Faria.
Não há proposta do governo para alteração da tabela do IR.
O governo também não demonstrou apoio a nenhuma proposta para taxação de grandes fortunas em tramitação no Congresso Nacional. Estudos indicam que a instituição desse tributo, que está previsto na Constituição, estimam que ele poderia render cerca de R$ 40 bilhões por ano à União.
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