PEC do Plasma que prevê comercialização do sangue seria vitória da iniciativa privada sobre SUS
Tentativa de mudança da Constituição passou por comissão no Senado e será decidida no plenário
O plasma humano, um dos componentes do nosso sangue, pode passar a ser tratado como mercadoria no Brasil. O caminho para isso acontecer é longo e até improvável, e envolve um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) votado às pressas na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado no último dia 4.
Agora, os senadores decidirão no plenário da Casa o destino de um texto muito vinculado a interesses da iniciativa privada. Por ser uma PEC, é necessário que 49 dos 81 votos possíveis a favor da pauta polêmica, que deixa várias brechas para o enfraquecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) no futuro.
O plasma corresponde a cerca de 55% do sangue e é responsável por transportar nutrientes, hormônios e proteínas aos órgãos do corpo. Pela atual Lei do Sangue, todo plasma humano que não for usado em transfusões de sangue, deve ser direcionado gratuitamente ao SUS.
A prerrogativa para a produção de medicamentos hemoderivados a partir do plasma, usados para tratar problemas imunológicos, câncer, HIV, entre outros, é da Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia). Criada em 2004, a estatal afirma que sua fábrica em Goiana, na região metropolitana de Recife, tem capacidade de processar até 650 mil litros de plasma ao ano.
Projeta-se que até 2025 as obras do complexo sejam concluídas, atendendo a demanda atual do SUS de 800 mil litros do componente sanguíneo. Enquanto isso não acontece, a Homobrás envia anualmente 180 mil litros de plasma para a empresa Octopharma AG fazer o processamento no exterior e devolver em formato de medicamentos, o que tem custo estimado de R% 1,5 bilhão/ ano.
É justamente essa lacuna entre a capacidade produtiva, a demanda crescente e um alegado desperdício do material doado pelos hemocentros, incluindo os particulares, que tem dado munição aos defensores da PEC. Como é o caso da relatora da proposta, a senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), e de senadores como o Dr. Hiran (PP-RR), que emitiu um dos 15 votos favoráveis à sua aprovação na CCJ, contra 11 dos seus opositores.
“Eu espero que com essa decisão, a gente consiga dar mais acesso, trazer empresas para investir no país em inovação, novas tecnologias, para fazer a plasmaférese que é fundamental para a fabricação desses imunoderivados que são muito importantes para o tratamento de doenças raras e que acabam sendo negligenciadas no nosso SUS”, declarou Hiran à TV Senado no dia da votação.
Apesar de reconhecer um possível “conflito de interesses” pela utilização comercial de um produto doado voluntariamente, Nycolle Soares, advogada especializada em Direito da Saúde, também acha viável um arranjo que não comprometa a universalização do acesso. “A bem da verdade, o nosso sistema de saúde já convive em diversas pontas com a exploração de atividades privadas que são feitas junto com entes públicos. Talvez esse seja mais um passo para avaliar como seria uma PPP, então talvez esse seja mais um passo para aprimorar essa sistemática”, projeta.
Corpo humano não é mercadoria
Apesar da remuneração a doadores, que passariam a vender o sangue, não estar explícita no texto da PEC, o uso da palavra “comercialização” pode abrir brecha para isso. Diante de protestos, a relatora garante que essa prática não está prevista na pretendida mudança constitucional e que não será votada na Casa.
O cenário que preocupa entidades como a Fiocruz, o Conselho Nacional de Saúde, a Conass e o Conasems, duas entidades que reúnem os secretários estaduais e municipais de Saúde. A própria ministra da Saúde, Nísia Trindade, reafirmou na semana passada o compromisso de destinar verbas para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde para a Hemobrás e considerou a possibilidade de comercialização do plasma como um “retrocesso” à Constituição de 1988.
“A PEC traz uma falácia de que somente o plasma será comercializado. Uma vez que abrimos uma Constituição e colocamos o comércio de uma parte do sangue, que é o plasma, sendo o sangue um órgão do nosso corpo, pessoas como eu, você e todos os usuários do SUS não vamos ter mais nossos direitos de acesso universal garantidos”, afirma Ana Lúcia Paduello, conselheira do CNS e representante da Associação Brasileira Superando o Lúpus e Doenças Reumáticas Raras.
A preponderância de uma lógica direcionada ao lucro também incomoda Hisham Hashida, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). “A partir do momento que eu tiro uma empresa pública e passo para o mercado, a gente sabe como o mercado age. Podemos estar dificultando o acesso da população a esses produtos, principalmente pela questão do preço. O outro ponto é a própria questão do controle de qualidade que pode entrar em risco”, alerta.
Crítico à proposta, o senador Humberto Costa (PT-PE) prevê um caminho ingrato à população, com possíveis esgotamentos dos bancos de sangue no país. Ele também prevê até um caminho para que, no futuro, se tente privatizar a doação de órgãos - algo que acontece apenas no Irã de forma legal - e que obedeceria apenas a ganância de algumas poucas empresas.
“O Brasil tem uma das melhores políticas de sangue do mundo, onde nós temos absoluta convicção de que aquele sangue transfundido para as pessoas é de alta qualidade, pelas normas de segurança que o Ministério da Saúde adota. Ao mesmo tempo, esse sangue é uma garantia para os brasileiros de que num momento de necessidade poderão ter acesso aos hemoderivados e ao sangue total, para cirurgias, acidentes.”, exemplifica o senador.
Mesmo que, no fim, o projeto não permita a venda de plasma humano, há uma preocupação de que a própria lógica de doação voluntária seja abalada pela finalidade de lucro. “Eu não vou doar o meu sangue se a indústria farmacêutica vai pegar o meu plasma e vai ganhar milhões. Estou doando porque eu acredito que doando eu vou ajudar pessoas e quando necessitar eu também vou ter a ajuda de outras pessoas. Essa é a ideia que nós compactuamos com a Constituição de 88”, reitera Ana Lúcia.
Esperança é que assunto perca força no Parlamento
Se unem contra a PEC senadores de diversos campos ideológicos. Além de governistas, há nomes como Mara Gabrilli (PSD-SP), Zenaide Maia (PSD-RN) e a Professora Dorinha Seabra (União-TO). Relatórios enviados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pelo Ministério Público em 2020, que dão conta de milhares de litros de plasma desperdiçados, não são suficientes para tornar o subproduto do sangue uma mercadoria. “Não vamos permitir que o sangue seja uma commodity. Isso aqui é comercializar parte do corpo humano”, protesta Zenaide.
Há quem considere a possibilidade de conciliar a produção estatal com o capital privado, desde que respeitando o monopólio da Hemobrás. O senador Rogério Carvalho (PT-SE) considera que é justamente a eficiência e seriedade do Sistema Nacional de Sangue que ajudou a tornar o Brasil o maior transplantador do mundo, e que isso não pode ser colocado em risco.
“Ninguém é contra a criação de novas empresas processadoras de hemoderivados. Essa não é a questão. O que nós estamos discutindo aqui é a comercialização de órgãos (...) Na hora que se abre a comercialização vamos ferir de morte a assistência. Podemos sim aproveitar melhor todo o plasma em processamento no Brasil”, diz o petista.
Nycolle Soares acha difícil compensar financeiramente os alegados custos dos bancos de sangue privados entre a coleta do sangue, separação do plasma e envio ao SUS. É possível, inclusive, que o setor privado prefira descartar o produto excedente do que entregá-lo gratuitamente, obedecendo a regulamentação imposta.
Outro argumento utilizado pelos defensores da PEC 10/2022 é que o custo de produção é maior na Hemobrás do que na iniciativa privada, que teria sempre maior capacidade de investimentos no desenvolvimento de novas tecnologias. “ O custo do mercado se coloca abaixo agora, mas a gente vê historicamente em produção de insumo que eu coloco a falsa impressão de que meu custo é menor até eu ter autorização para produzir. A partir do momento que eu tenho autorização para produção, eu domino o mercado e regulo o preço. Vimos isso com as vacinas, por exemplo”, argumenta Hashida.
Já Ana Lúcia exime a Hemobrás de toda a responsabilidade sobre a lacuna entre oferta e demanda existente na produção brasileira de medicamentos hemoderivados, como Albumina, Imunoglobulina, Fatores de Coagulação VIII e IX.
“Quanto investimento foi destinado nos últimos anos para o efetivo avanço da produção de hemoderivados de plasma? Essa empresa recebeu todos os recursos para que pudesse expandir, aumentar sua capacidade e investir em inovação? Agora nós temos um governo que colocou isso como prioridade, porque sem isso não teremos avanço. Estamos voltando às políticas de investimento em ciência e tecnologia”, diz, em referência ao corte de verbas imposto pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).
Com uma batalha decisiva à vista, mas ainda sem data prevista para ocorrer, a senadora Ana Paula Morgado (PSB-MA) conclama a união de seus pares. “Achamos que o plasma não é mercadoria, inclusive abre o leque para que outros órgãos possam ser comercializados, o que nós somos contra. Então votamos contra na CCJ, vamos contra no Plenário, e esperamos que a gente derrube essa PEC”, finaliza.
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